Porquê descer de novo a Avenida da Liberdade?
Sempre gostei de passear pela Avenida da Liberdade ao longo dos meus tempos por Lisboa, apesar de alguns atentados que lhe foram sendo feitos, em especial ao entardecer, quando as cores ganham outras tonalidades, enquanto o ruído do trânsito se vai esvaindo para outras paragens. Já não tenho a velha Buchholz para fazer uma paragem intermédia em busca de leitura menos óbvia ou dos tops do momento, ali por trás, nem sou especial adepto de esplanadas com vista para os escapes, mas o velho Passeio Público ainda guarda algum do seu encanto, à nossa escala, de outras avenidas mais monumentais.
No entanto, nos últimos 15 anos foram quase mais as vezes que desci a Avenida envolvido em ruidosa multidão, por entre palavras de ordem e cantos diversos, em sucessivos protestos, do que propriamente em relaxado lazer. O que me desagrada, nem que seja porque essas descidas corresponderam à necessidade de ajudar a transmitir uma insatisfação crescente, permanente, urgente, de toda uma classe profissional, usada e abusada pelo poder político e apresentada à opinião pública de uma forma injusta e mesmo ofensiva por sucessivos governantes que a quiseram tornar a causadora de males financeiros e o obstáculo a inovações educacionais.
E eu não gosto de protestar, muito mais de forma ruidosa, Avenida abaixo, a cada mandato, a cada nova investida que promete melhorar aquilo que objectivamente prejudica. Que apresenta o «interesse dos alunos» como algo estranho aos que com eles passam a maior parte dos seus dias e da própria vida, desde a tenra meninice até à entrada na idade adulta.
Não faz parte da minha natureza andar metido em multidões, eu que nem a jogos do meu Sporting vou e a festivais musicais pouco mais, passada a fase própria da idade para essas coisas de concertos e celebrações colectivas para quem não se vê na necessidade de a viver mais tarde.
Descer a Avenida da Liberdade, em protesto recorrente, não me faz feliz, não me faz sentir vivo, porque defunto não me lembro de já ter sido. Ou adormecido. Mas lá vou eu de novo, mais uma vez, nem sempre fazendo todo o caminho até aos discursos previsíveis, de mobilização e comunhão, que raramente entranho. Mais uma vez, em romaria, quase procissão, porque mais uma vez é necessário mostrar quão funda é a insatisfação, a sensação de injustiça, de não reconhecimento, de revolta perante a constante mistificação que envolve os docentes praticamente desde que este milénio é o terceiro da nossa contagem.
Há quem diga não perceber a razão desta insatisfação, quem questione mesmo porque andarão os professores, de forma periódica, tão zangados e revoltados ou quem se limite a despejar os seus preconceitos em forma de prosa ou comentário mediatizado sobre aqueles que ora apresenta como uma classe de privilegiados, ora de gente que nada sabe fazer, quando não se diz que pouco faz e muito exige, quando apenas pede o que lhe deveria ser devido por singela justiça e reconhecimento. Respeito, para começar. A devida retribuição, como é de elementar justiça a quem conseguiu, mesmo antes do esforço muito acima da média dos tempos da pandemia, resultados que elevaram o patamar de Portugal nas comparações internacionais. Quantas vezes à conta de tornear e ignorar a torrente de alegada «inovação» da incontinente legislação educativa nacional e todos os seus «projectos», «planos» e «programas» de tudo e mais nenhuma coisa.
Mas voltemos às razões de se andar, por entre outros trajectos, rumo a São Bento ou Belém, em busca de inexistente compreensão, de regresso à Avenida da Liberdade.
Os professores estão de regresso à Avenida porque são enganados, tanto mais quando são elogiados. Porque são tratados de forma iníqua e injusta. Porque são considerados matéria low cost para cada vez mais servirem de mão de obra para escolas, transformadas em depósitos de crianças em trânsito acelerado para o cumprimento de uma escolaridade obrigatória sem substância, mero artifício estatístico, sem qualquer tipo de verdadeira avaliação externa das aprendizagens. Professores que se diz ganharem muito, serem uma despesa, um encargo, como se do salário nominal não recolhessem apenas parcela cada vez mais minguada, depois do saque fiscal que os seus críticos ignoram. Porque os professores geram receita, não apenas daquela que satisfaz as mentalidades contabilísticas, mas da que “produz” os cidadãos do futuro, mais ou menos lugar-comum indesejado, mas adequado.
Os professores querem respeito nas várias fases da sua carreira, que não começa apenas na entrada nos «quadros», velho mito da «efectivação», agora cada vez mais precarizada.
Não adianta andar mandatos sucessivos a anunciar uma estabilidade que não é desejada pelo poder político, que prefere poupar um ou dois meses de salário de um professor contratado, em vez de o colocar no dia 1 de Setembro no lugar onde faz falta. Que lhe conta as horas ao minuto e os meses aos dias, para evitar que cumpra as condições de vinculação. Que apresenta como “cedência” o que não passa da aplicação do que é praticado no resto da administração pública. Que lhe nega incentivos à deslocação, quando os permite a outros grupos profissionais.
Não serve de nada elogiar ocasionalmente os professores, quando se lhe não reconhece o mérito, sujeitando-os a uma tortura burocrática incessante para demonstrarem que fizeram o que fizerem ou mesmo o que não fizeram, mas deveriam ter feito. Em que o ónus da prova está sempre de um dos lados, desprezando-se o trabalho em aula com os alunos em favor da sua representação em forma de grelhas a monitorizar e validar, numa utilização do tempo perfeitamente inútil, para quem as preenche, para quem se acha com a competência de as avaliar mas, principalmente, para os alunos.
Não adianta presentar mapas com mais ou menos quadros de zona pedagógica, se as vagas continuam nos sítios do costume e os candidatos disponíveis, com a devida qualificação, para os preencher estão em outros e é financeiramente mais racional aceitar outros empregos, de muito maior proximidade.
Faltam professores? Não é verdade. Basta ver os números dos candidatos nos concursos externos que ficam de fora. Falta é a vontade de adequar as condições para os vincular e apoiar a sua deslocação, algo singular em qualquer classe profissional de qualificação superior (ou mesmo outra). Sem contar com a emigração, claro.
O sistema de progressão por quotas, com listas de espera corresponde a um terceiro congelamento na carreira, fazendo com que todos os cálculos sobre uma quase mítica chegada ao «topo da carreira» seja miragem e permitindo que, mesmo com todo o tempo cumprido, as aposentações sejam o que de mais mitigado se consegue, em termos líquidos e reais, que escapam a completas mistificações produzidas em alguma comunicação social, mais graves em quem se sabe ter a informação necessária para evitar a desonestidade evidente.
O que ajuda a alimentar a revolta, a tal insatisfação, que faz dezenas de milhares, em meu redor, voltar a reunir-se no Marquês e ir em direcção ao Rossio ou à margem do rio.
Querem a Cidadania na escola, como disciplina, em fatias semanais, mas negam-na e à Democracia no seu funcionamento diário. As escolas passaram a funcionar em modo de cadeia de comando hierárquica, sendo o tão falado «trabalho colaborativo» desenvolvido apenas na base, a partir das imposições do topo. O modelo de gestão usado para impor a «flexibilidade curricular» é ele um exemplo maior de rigidez anquilosante.
Numa negociação é essencial existir confiança e isso é algo que deixou de existir, há muito, entre professores e tutela, sendo que os sindicatos demoraram muito tempo a perceber que sendo «representantes», devem seguir os anseios dos «representados» e não agendas particulares, com condicionamentos exógenos. Porque muito do protesto destes dois meses foi em formato de auto-mobilização, apenas com a «sombrinha» de uma convocatória do mais pequeno e recente sindicato de todos.
A solução para este conflito está do lado de quem o começou, ao escolher os professores como alvo preferencial das suas políticas de pretensa «nova gestão pública» ou «governança eficaz» e, como consequência, ter causado a pior crise de recursos humanos na Escola Pública nas últimas décadas.
É por isso que, de novo, iremos descer a Avenida da Liberdade em protesto. Por dever cívico, não por prazer, teimosia ou egoísmo.