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«O culpado foi o João»

«O culpado foi o João»

Excerto do livro “Ajudar a cair”, de Djaimilia Pereira de Almeida.
6 min
Publicamos um excerto do segundo capítulo do livro “Ajudar a cair” (págs. 19-24), da autora Djaimilia Pereira de Almeida. O livro resulta da convivência da autora com as pessoas com paralisia cerebral institucionalizadas no Centro Nuno Belmar da Costa, em Oeiras.

 

O Centro é uma casa onde vivem 29 pessoas. Temos um Lar Residencial para os 29 e, ao longo do dia, temos o Centro de Actividades para os 29 e para outras pessoas que, ou vêm de casa, ou de um outro equipamento da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa que não tem Centro de Actividades. No Centro de Actividades, temos Reabilitação e também actividades ocupacionais. Em termos técnicos, temos Terapia Ocupacional, Terapia da Fala, Fisioterapia, Psicologia, Desporto, Artes, Pedagógicas, Ateliers e saídas lúdicas (à sexta-feira). Cada um tem um horário, um pouco como numa escola. As actividades vão ao encontro dos gostos e das necessidades terapêuticas de cada um, contemplando também espaços livres, para que descansem um pouco ou vão dar um passeio. A primeira directora, Maria Helena Vaz Pinto, teve a oportunidade de ir a Inglaterra conhecer centros e perceber como funcionavam, porque este foi o primeiro centro em Portugal com estas dimensões. O Tiago, por exemplo, que morava perto, não entrou a 19 de Abril de 1982, no dia da abertura. Veio cá a 17 de Abril para que lhe dessem banho e tratassem dele, para que a equipa aprendesse como se dava banho, como se vestia e como se deitava uma pessoa como ele”, lembra Odete Nunes, directora desde 2007.

Apenas quatro dos residentes actuais vivem no Centro Nuno Belmar da Costa desde a sua fundação, na Primavera de 1982. A maioria vive aqui há mais de uma década e aparenta estar na meia-idade. Levo uma descompostura no primeiro lanche que sirvo a João Pedro, tetraplégico acamado (um dos poucos residentes que não padece de paralisia cerebral). Pergunto se lhe está a saber bem a carcaça com manteiga que lhe dou sentada na sua cama, entre goles de café com leite. Responde “Está o quê?!”, como se o tivesse insultado. Acontece o mesmo dirigindo-me a outros residentes que, a medo, me apercebo de tratar, nas primeiras horas, de um modo infantil. A maneira adequada de me dirigir a quem aqui vive aprendo-a por imitação, observando as outras monitoras. Devo fazê-lo com a mesma amizade respeitosa de que me serviria para lidar com qualquer dos meus vizinhos, como sabem as mulheres e homens que aqui trabalham e não se desmancham. Reconhecê-los como semelhantes exige respeitar a sua senioridade, percebendo que poderiam ser meus pais ou avós e que já lhes passaram pelo corpo mais mãos do que a mim. “Uma coisa que admiro muito é a forma como se adaptaram a tantas e tantas pessoas que já passaram por aqui, ao longo de quase 35 anos”, admite Odete Nunes.

As fases de um turno da tarde das monitoras e monitores conciliam a necessidade com o ócio. Comer, ir à casa de banho, descansar, comer, ir à casa de banho, descansar, dormir. Mas a biologia não interfere na alegria distante dos monitores, a qual admite a privacidade dos residentes. São respeitados os desejos e os caprichos que não ponham em risco a saúde; a negação; o pudor e a intimidade. Não se entra num quarto antes de bater à porta; sai-se e fecha-se a porta enquanto alguém se serve da casa de banho; não se interfere na nuvem de namoros, nem nas manias benignas. É respeitado o ritmo de cada um e a possibilidade do descanso e do lazer, de que todos gozam. Observados ao longe, os monitores cruzam os corredores num corrupio, parando junto às cadeiras de rodas para decifrar uma frase ou para atender a um pedido de um dos residentes respondendo como se houvesse todo o tempo e tempo nenhum para o fazer. Não fosse trabalho e, visto de fora, pareceria uma dança. Na sua equanimidade natural, a sombra da buganvília defronte do Centro é a imagem do espírito que nele habita, aos olhos de um recém-chegado. Refresca todos sem que lhe possamos agradecer, fora da memória, como um favor gratuito que já ninguém se lembra de quem terá plantado.

[…] A maior preocupação de Odete Nunes é a de garantir que os residentes são encarados e tratados como semelhantes pela comunidade onde estão inseridos. Segundo a directora, é por essa razão que as portas do Centro estão sempre abertas: “esta casa também é sua”, confia-me, com um sorriso, da primeira vez que falamos. Numa segunda ocasião, numa manhã de Setembro, explicará que aquilo que mais a empenha é saber que tem à sua responsabilidade as suas vidas. “O que me deixa feliz é saber que têm uma vida digna e que estão bem. A gestão da casa vai-se fazendo. Gerir pessoas é muito complicado. Nós temos 50 funcionários que trabalham por turnos, o que é muito duro e o trabalho não é fácil.” Odete tem 37 anos e um rosto de menina, aparentando ao mesmo tempo ser mais nova e mais velha do que é na realidade. Não tem filhos. É natural do concelho de Mortágua, distrito de Viseu. A primeira pessoa com deficiência que Odete conheceu foi Hélder, portador de trissomia 21, o filho do marido de uma tia sua. Odete era pequena e franzina, tinha cinco ou seis anos, e “morria de medo” de Hélder, que a “adorava”. Perderam o contacto passado algum tempo, quando os tios se separaram, o que a aliviou muito, sendo ainda uma menina. Anos depois, não entrando para Enfermagem, estudaria Serviço Social, em Coimbra. Na faculdade, tornou-se próxima de Carla, uma colega de curso. Um dia, Carla convidou Odete a passar uma noite em sua casa para estudarem juntas. “Ela vivia perto da Figueira. E quando entro, deparo-me com uma pessoa sentada numa cadeira de rodas. ‘Não sei se já te disse, mas tenho um irmão com paralisia cerebral’”, disse-lhe a amiga. João conquistou a rapariga. “O João não falava, não andava, não comia sozinho. Cheguei-me a ele, e ele abraçou-me. Ria-se muito, era muito bem-disposto.” Foi por desafio da amiga que Odete começou a fazer colónias de férias com pessoas com deficiência, o que Carla já fazia. “E porque é que o João não vai comigo fazer uma colónia de férias?”, disse uma vez aos pais de João, que nunca saíra com ninguém à excepção deles e da irmã. “Eles ficaram em pânico”, mas Odete levou o João de férias uma primeira vez. “Ele sempre fez parte da minha vida”, conta, comovendo-se. “O João já faleceu, em Janeiro de 2011”, por altura de um surto de gripe A. Terminado o curso, Carla veio trabalhar para Lisboa para a APCL, e Odete juntou-se-lhe como sua adjunta, já no Centro Nuno Belmar da Costa, que Carla começou por ser convidada a dirigir. Até 2007, Lisboa era para Odete um ponto de passagem a caminho do Algarve, em Agosto. “É uma história, não é? O culpado foi o João.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de «Ajudar a cair», um retrato da Fundação Francisco Manuel dos Santos. O livro está disponível na nossa loja online, com 10% de desconto e portes de envio gratuitos.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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